Quero compartilhar um aprendizado. Desde que comecei a
trabalhar com pessoas em situação de rua há quase um ano atrás, muita coisa
mudou. Mudou em mim, mudou nos outros ao meu redor. Abri mão de muitos
conceitos preguiçosos de quando preferimos o lugar comum do pensamento coletivo
ao invés de nos dar uma oportunidade de enxergar diferente.
Eu sempre tive consciência e nunca escondi de ninguém, que
não seria capaz de trabalhar com hospitais, nem na ala adulta, menos ainda na
ala infantil. Motivos pessoais, de ordem familiar, que não me permitem
vivenciar novamente algo que lutei tanto para conseguir superar.
Então pensei ter encontrado o trabalho perfeito pra mim nas
ruas dessa cidade que tanto gosto. É verdade que entre eles, há condições de
todo tipo: doentes físicos, doentes emocionais, viciados, ex-detentos. Mas de
certa forma, apesar de ser um paradoxo, a clausura deles é interna. Não há
paredes que os impeçam de ver o mundo. E ao mesmo tempo, ser tão vulnerável a
esse mundo os torna vítimas de muitas coisas: da violência latente no submundo
da cidade sorriso; do sistema que oprime a todos nós também; do nosso próprio
preconceito sempre que dizemos que quem está na rua, está porque quer.
Eu não posso imaginar quem escolheria viver em condição tão
sub-humana, abandonado, exposto à tantas vicissitudes convidativas quando não
se tem chão e quando o chão é tudo o que se tem.
Dizem que uma das coisas mais inesquecíveis que se pode ter
de alguém é o olhar. Ele é intrínseco a cada um, não se pode imitar. E eu não
esqueço o olhar de cada um deles a cada dia em que saio do aconchego do meu lar
para dividir com eles o que há de mais precioso em minha vida: o meu
tempo. Digo isso porque cada minuto que
eu passo na companhia deles, nunca mais vai voltar pra mim.
E depois de quase um ano fazendo esse trabalho, estou num
conflito interno muito grande. Muitos deles eu conheço pelo nome. Outros posso
não saber o nome, mas toda semana nos encontramos, conversamos, contamos
piadas, fazemos brincadeiras, rimos, sorrimos, conversamos sobre Deus,
política, sobre a Copa. Então desde que o inverno curitibano começou, eu deito
na minha cama para dormir e o último pensamento que tenho é como vou me sentir
se o nosso próximo encontro nunca mais acontecer.
Em tempos onde todos tem opinião sobre tudo, principalmente
nas redes sociais, está muito comum criticar bastante coisa, inclusive o
governo. Se fosse para contextualizar politicamente como acabamos nessa
situação que o país enfrenta, seriam necessárias muitas laudas e eu certamente
não teria capacidade de conduzir essa conversa porque me falta conhecimento de
causa.
Mas tem uma coisa que acho muito injusta. Como eu posso
criticar um governo e todas as suas ações de fato falhas e ao mesmo tempo olhar
para o lado vendo um ser humano passando frio e fome e acreditar que isso não é
problema meu? Mudar a realidade do país
é necessária, mas o resultado disso é a longo prazo. Enquanto tentamos usar as
armas que temos para combater um sistema tão defasado, não podemos nos esquecer
das ações de curto prazo. Porque elas existem e existem para os dois lados: a
fome mata a um prazo mais curto do que as gerações que levaremos para consertar
o Brasil. E o frio então, só precisa de algumas horas para levar embora alguém
que tem sentimentos.
Se estão sob efeitos de drogas, se estão sujeitos à
prostituição, se são reminiscências da violência dentro ou fora dos presídios,
isso não os isenta de sentir. Sentir raiva, decepção, fome, frio, tristeza. E
eu afirmo que eles são capazes de sentir outras coisas em meio a tudo isso:
amor, gratidão, simpatia, solidariedade. E reafirmo que são capazes porque é o
que eu vejo a cada visita.
Já entreguei sopa para idoso carente, gente sob efeito de
álcool, gente sob efeito de crack, traficante com arma na cintura com idade do
meu irmão caçula, prostituta esperando pra fazer o próximo programa, travesti
pronto pra começar a noite, ex detento que saiu da prisão naquele dia, esquizofrênicos,
portadores de HIV, ladrões com espírito de Robin Hood. E antes que você me
venha com todo o seu preconceito, eu te digo na cara que não tenho vergonha do
que eu faço e não acho que eu beneficio a má conduta.
Nós conversamos muito, eu rebato pensamentos e negócios escusos
que me são revelados. E às vezes me choco. Mas eu transmito todos os dias uma
mensagem de amor e solidariedade e ganhei o respeito deles com isso. Eu
conquistei a minha liberdade de entrar no território deles e dizer como eu
penso, mesmo que isso contrarie a conduta que eles me apresentam. Sem
submetê-los a uma doutrina, filosofia ou ideologia, eu consigo acesso falando
com a naturalidade que conversaria com meus amigos na mesa de bar. É como se eu
plantasse uma sementinha e cuidasse dela a cada novo encontro. E eu me orgulho
disso.
Então quando eu peço doações, eu não estou simplesmente
pedindo benefícios que serão repassados de mão em mão. Quando eu peço doações,
eu peço a oportunidade para cada um de vocês participar dessa cadeia complexa
que acabei de ilustrar. Quem achar que não dá conta de vivenciar na rua essa
experiência (assim como eu não consigo trabalhar em hospitais), mas puder
prover qualquer coisa que nos ajude a dar continuidade ao trabalho, estará
movendo uma energia no universo que é capaz de transformar o impossível no
milagre da vida.
Quando eu peço doações, estou tentando abraçar uma causa muito
maior do que eu mesma consigo imaginar. E não quero fazer isso sozinha. Porque
o mundo só vai melhorar com a caridade, a solidariedade e o amor. E isso tudo
vem antes da fé em qualquer crença religiosa ou filosófica.
Quando eu peço doações, eu peço por todos nós. Porque a
transformação abrange a todos.